Os Que São Governados pelo Sistema Legal Perdem a Liberdade de Sua Filiação - Cap. 4:1-11

O primeiro resultado negativo de se misturar lei e graça é a perda da liberdade de nossa “filiação”. Isto é uma coisa prática. Nunca podemos perder nosso lugar como filhos diante de Deus, mas a liberdade que acompanha aqueles que estão nesta posição de privilégio, pode ser perdida.
Paulo introduziu o assunto da filiação Cristã no capítulo anterior para enfatizar a posição superior que os crentes agora possuem como resultado da vinda da fé. Filiação, como já vimos, é uma das bênçãos distintas no Cristianismo (cap. 3:25-26). Ele volta-se agora para um costume de um lar judaico para ilustrar a diferença da posição favorecida de “filiação” na família de Deus como oposta a diminutiva posição de um “menino [criança – JND]na família.
Vs. 1-3 – Os santos nos tempos do Velho Testamento, sob a lei, são assemelhados a crianças em um estado de infância, sob “tutores [guardadores] e curadores [intendentes]. Eles estavam numa posição onde os princípios elementares da religião judaica eram impostos sobre eles e isso atendeu à condição de imaturidade espiritual deles, sendo necessária a disciplina e cuidado constante da lei. Paulo diz: “Assim também nós, quando éramos crianças estávamos mantidos em servidão debaixo dos elementos do mundo” (JND) – isto é, a religião mundana (terrena) do judaísmo. Três coisas caracterizavam os santos em sua posição no Velho Testamento: Eles não conheciam a Deus como seu Pai, a obra de redenção ainda não havia sido realizada, e o Espírito de Deus ainda não havia sido dado. Os rituais e cerimônias que caracterizavam aquela religião terrena haviam sido designados para aqueles que estavam naquela posição diminuta.
Vs. 4-5 – Na “plenitude do tempo” (v. 4 – ARA), quando o período de provação para o homem na carne se completou (4.000 anos ou 40 séculos desde Adão até Cristo), “Deus enviou Seu Filho”. A vinda de Cristo colocou um fim nas três coisas que caracterizavam aqueles do Velho Testamento. A encarnação de Cristo resultou na revelação do Pai (Jo 1:18); a morte de Cristo trouxe redenção (1 Pe 1:18-19); a ascensão de Cristo resultou na descida do Espírito Santo (At 2:33). Portanto, quando uma pessoa aceita o testemunho do Pai e o Filho e descansa em fé na obra consumada de Cristo para sua salvação, ela é habitada com o Espírito Santo, e dessa forma é capacitada a desfrutar a liberdade e os privilégios de um filho adulto na família de Deus.
Paulo indica que aqueles que foram convertidos do judaísmo por crerem no evangelho são como “crianças” que amadureceram. Elas deixaram aquela posição de um menor, e estão agora numa posição de “filhos” na família de Deus. O Bar Mitzvá judaico ilustra isso. Numa família judaica, quando um menino atinge a idade de 13 anos, ele é formalmente elevado da posição de criança na família para a posição de filho; a partir de então ele desfruta de maiores liberdades e privilégios na família. Esta mudança de posição ilustra a posição de um Cristão na família de Deus como oposta à daqueles em terreno judaico nos tempos do Velho Testamento. Isso é verdade para ambos, tanto crentes judeus como crentes gentios. Observe que quando Paulo diz: “a fim de (nós) recebermos a adoção de filhos” no versículo 5, tal expressão refere-se a crentes judeus, e quando ele diz: “E porque (vós) sois filhos” no versículo 6, essa expressão refere-se a crentes gentios.
Teólogos adeptos da teologia do pacto nos dizem que “a plenitude do tempo” (v. 4 – ARA) é a mesma coisa que a “plenitude dos tempos” de Efésios 1:10. Eles creem que quando o Senhor Jesus veio a este mundo em Sua primeira vinda Ele introduziu a “dispensação [administração – JND] da plenitude dos tempos” – a qual é o Milênio. Portanto, de acordo com os ensinamentos deles, estamos no Milênio agora! Todavia, estas duas expressões não são iguais, “a plenitude do tempo” em Gálatas 4 está no singular, enquanto que em Efésios 1:10 está no plural. A “plenitude dos tempos” tem a ver com a culminação dos caminhos de Deus com o homem na dispensação final (o Milênio), quando a glória de Deus será exibida no reino de Cristo e a Igreja; como mencionado, “a plenitude do tempo” tem a ver com a provação do homem na carne sendo completada depois de 40 séculos de teste. Em Gálatas 3:16, Paulo já havia mostrado que a ausência da letra “s” muda consideravelmente o significado da passagem, o mesmo acontece nesta passagem. Podemos ver a partir disso como o não atentar para detalhes importantes na Escritura pode levar ao erro. Devemos ler a Escritura “preceito após preceito; linha após linha” (Is 28:10 – JND), prestando grande atenção aos seu menores detalhes.
Na versão Almeida Revista e Corrigida o versículo 5 diz: “a fim de recebermos a adoção de filhos. Esta última parte do versículo poderia ser traduzida como “filiação”[1], pois é a mesma palavra usada para “adoção” no grego (conforme nota de rodapé em Rm 8:15 na tradução de JND). Alguns imaginam que, assim como existem duas maneiras de crianças serem introduzidas em nossa família terrena (por nascimento ou adoção), assim também Deus também tem duas maneiras de trazer pessoas à Sua família. No entanto, isto não é verdade. Existe apenas uma forma de entrar na família de Deus – pelo novo nascimento. Adoção é uma promoção de alguém que já está dentro da família para a posição superior de filiação.
No sentido em que a palavra “crianças” é usada em Gálatas 4, pessoas tornam-se “crianças” por meio do novo nascimento, e então se tornam “filhos” ao receberem o Espírito. O apóstolo João não usa a palavra “crianças”[2] (1 Jo 2:1, 3:7, 18, etc. – JND) num sentido diminutivo como Paulo faz aqui. Nos escritos de João, “crianças” de Deus são vistas como tendo o Espírito (1 Jo 2:20; 3:24, 4:13), e, portanto, refere-se àqueles a quem Paulo chama de filhos. “Crianças” nos escritos de João estão na posição Cristã completa na família de Deus, mesmo aqueles que João classifica como “filhinhos” (recém-convertidos) estão nesta posição (1 Jo 2:18). João chama-os “filhinhos” porque a ênfase em suas epístolas está na vida eterna e no relacionamento que temos com o Pai em afeição (1 Jo 3:1). João não usa o termo “filhos” – embora a versão Almeida Revista e Corrigida traduza “crianças” como “filhos” erroneamente (Jo 1:12; 1 Jo 3:1; etc.).
V. 6 – Todas as três Pessoas da Divindade são encontradas neste versículo garantindo a liberdade de filiação aos crentes. Paulo diz: Deus enviou aos nossos corações o Espírito de Seu Filho, que clama: Aba, Pai”. Esta bênção tremenda é a possessão comum de todos os crentes – tanto aqueles que eram judeus como aqueles que eram gentios. Isto é visto no uso do pronome “nós” no versículo 5, que indica crentes judeus, e dos “vós” no versículo 6a, que indica crente gentios. Na última parte do versículo 6, ele une os dois juntos dizendo “nossos”.
A ênfase aqui não está tanto na bênção e posição de filiação, mas nos privilégios práticos conectados com isso. É “o Espírito de Seu Filho” clamando em nosso coração. Isso é, o Espírito nos dá a consciência desta revelação, e a resultante ousadia para nos achegarmos ao Pai com a mesma intimidade que o próprio Filho de Deus Se achega a Ele. Isso é indicado na expressão: “Aba, Pai”. Estas são as mesmas palavras que o Senhor usou quando falou com Seu Pai (Mc 14:36).
  • Aba” indica intimidade
  • Pai” indica inteligência 
A liberdade de filiação é a de se achegar a Deus como nosso Pai “livremente se dirigindo a Ele” (JND) em todas as nossas orações e louvores (1 Tm 4:5 – JND). Isso não significa que podemos ser irreverentes quando falando com Deus – devemos sempre nos achegarmos a Ele reverentemente. Mas podemos fazer isso com franqueza e intimidade porque somos filhos.
V. 7 – O apóstolo esclarece o fato de que este maravilhoso privilégio de filiação deve ser exercitado individualmente, dizendo: “és filho”. Observe que tal expressão está no singular. Enquanto uma companhia de crentes, somos todos filhos de Deus” (Gl 3:26), mas o exercício prático de nossa liberdade diante do Pai é inteiramente uma questão individual. O que isso significa é que não podemos desfrutar das liberdades da filiação por outra pessoa, e vice-versa; é algo que devemos experimentar individualmente. “Herdeiro de Deus” também é mencionado no singular aqui, talvez pela mesma razão.
Vs. 8-11 – Tendo declarado este maravilhoso privilégio de filiação, o apóstolo agora aponta para o retrocesso dos gálatas. Eles haviam sido salvos e estavam na posição de filhos, porém tinham voltado para a lei. Uma pessoa sob a lei se achega a Deus por meio de um sistema de formas, cerimônias e rituais, os quais a colocam numa certa distância de Deus. Este era o caso do judaísmo, que era uma religião dada por Deus projetada para um povo terreno que não tinha a posição de filiação. Aqueles que viviam no tempo do Velho Testamento se achegavam a Deus desta forma porque “ainda o caminho do santuário [santo dos santos – ARA] não estava descoberto” (Hb 9:8). Ao se dirigirem para esse sistema legal os gálatas perderam a liberdade de sua filiação. O retrocesso deles não era em sua posição diante de Deus como filhos – isto é algo imutável – mas em sua conduta como filhos. Não podemos jamais perder nossa posição de filiação, mas podemos perder a liberdade dela – e este era o problema dos gálatas.
Antes de serem convertidos eles serviram “aos que por natureza não são deuses” e estavam em sujeição a essas falsas deidades escravizantes (v. 8). Isso mostra que, enquanto havia alguns entre eles que eram de descendência judaica, a maioria dos gálatas eram gentios convertidos. E agora, depois de serem salvos, ao se voltarem para a lei, estavam retornando à servidão dos “rudimentos [princípios – JND] fracos e pobres” da religião terrena. A diferença era que o sistema legal mosaico era uma religião de cerimônias e rituais ordenada por Deus, enquanto que a adoração pagã possuía rituais corruptos. Ambas tinham rituais e cerimônias que ficavam entre o adorador e a deidade que ele adorava. Portanto, para um Cristão adotar agora o judaísmo – mesmo tendo sido uma religião ordenada por Deus – é colocar-se em servidão (At 15:10) e perder sua liberdade como um filho.
Isto aconteceu em grande medida na Cristandade. Adoração formal e estruturada veio a ser aceita em muitas denominações como sendo o ideal de Deus, e tomou o lugar da liberdade de filiação que Cristãos possuem de se achegarem a Deus. Na maioria dos casos, esta ordem semi-judaica teve suas raízes no catolicismo e nas igrejas reformadas que surgiram do catolicismo quando crentes tinham pouca luz quanto à revelação Cristã da verdade. Naqueles dias, eles tinham acabado de sair das trevas do catolicismo e não entendiam a verdadeira natureza e chamado da Igreja. Eles (como muitos fazem hoje) creram que a Igreja é o Israel espiritual, e que todas as promessas de Deus para os patriarcas do Velho Testamento se cumpriram hoje na Igreja num sentido espiritual. Sendo assim, eles não veem nada de errado em se misturar ideias judaicas de aproximação de Deus com adoração Cristã.
Consequentemente, em lugar de se achegarem a Deus na liberdade de filiação “livremente se dirigindo a Ele” em oração espontânea, Cristãos nesses sistemas foram reduzidos ao uso de livros de oração e programas de adoração pré-arranjados. A linguagem usada nesses livros de oração indica um povo adorando a Deus a certa distância. A partir disso vem a ideia de se “fazer uma reza”, que é a recitação de uma oração previamente escrita. Nestes sistemas, Deus é tratado como “nosso Pai celestial” como se Ele estivesse bem longe nos céus – embora as Escrituras digam que Cristãos estejam assentados em lugares celestiais na mais próxima posição de Deus possível que uma criatura poderia ter (Ef 2:6). Cristãos estão numa posição onde nenhum sacerdote de ordem aarônica jamais pôde estar – na imediata presença de Deus, no santuário celestial, o verdadeiro “santo dos santos” (Hb 10:19 – ARA). Estando em tal lugar de proximidade de Deus é adequado que nos dirijamos a Ele simplesmente como “Pai”. Além disso, salmos do Velho Testamento são utilizados para expressar os sentimentos de Cristãos em suas orações e louvor. Os salmos, como sabemos, estão cheios de expressões que indicam que o adorador não tem a certeza de salvação e aceitação diante de Deus por meio da obra consumada de Cristo. O grande efeito de Cristãos adotarem estas expressões é que a liberdade de filiação na presença de Deus, o Pai é, na prática, perdida inteiramente. Os que assim fazem acabam essencialmente se aproximando de Deus no terreno do Velho Testamento.
Grupos Cristãos que possuem maior luz e entendem que a adoração Cristã formal nas grandes igrejas eclesiásticas da Reforma não é o ideal de Deus, também podem perder a liberdade de filiação na presença do Senhor. Se o espírito de legalismo penetrar em tal ajuntamento de Cristãos, isso se fará evidente pelas orações dos santos sendo rígidas e cheias de chavões frequentemente repetidos.
Vs. 10-11 – Os gálatas desviaram-se entrando em cerimônias e rituais rudimentares de religião terrena. Estavam guardando “dias, e meses e tempos, e anos”. Fazendo isso, estavam se voltando para um sistema que os colocaria, na prática, no terreno do Velho Testamento. Esta era uma grande preocupação para o apóstolo. Ele disse: “Receio de vós, que não haja trabalhado em vão para convosco”. Isso significa que ele temeu por eles no que diz respeito à vida espiritual deles, porque estavam num caminho totalmente errado. Além disso, Paulo viu seu “trabalho” despendido com eles como sendo de nenhum efeito.
Em suma, o primeiro ponto de Paulo no capítulo 4 é que se um Cristão mistura princípios de lei com graça, ele irá se colocar sob a “servidão” da religião terrena e perderá a liberdade de sua filiação na presença do Pai.






[1] N. do T.: tanto em Romanos 8:15, 23 quanto em Gálatas 4:5 encontramos a mesma palavra o grego “uihothesia” que está como “adoção de filhos” na versão King James e como “filiação” na de J. N. Darby)

[2] N. do T.: A palavra grega “teknion”(diminutivo de “teknon”), traduzida na KJV com “criancinhas” e na JND como “crianças”, é empregada em 1 Jo 2:1, 12, 28, 3:7, 18, 4:4, 5:21; Jo 13:33; Gl 4:19 e, conforme nota de rodapé da versão JND em 1 Jo 2:1, “é um termo de afeto paterno que se aplica aos Cristãos, independentemente do crescimento”; a palavra grega “paidion”, traduzida na KJV e JND como “criancinhas”, é empregada nos cap. 2:13 e 18 de 1 João e significa os que são imaturos na fé, como em 1 Coríntios 14:20. Em todas as versões em português todos esses versículos são traduzidos como “filhinhos” indistintamente.