O primeiro resultado negativo de se misturar lei e graça é a perda da liberdade de nossa “filiação”. Isto é uma coisa
prática. Nunca podemos perder nosso lugar como filhos diante de Deus, mas a
liberdade que acompanha aqueles que estão nesta posição de privilégio, pode ser
perdida.
Paulo introduziu o assunto da filiação Cristã no capítulo anterior para
enfatizar a posição superior que os crentes agora possuem como resultado da
vinda da fé. Filiação, como já vimos, é uma das bênçãos distintas no
Cristianismo (cap. 3:25-26). Ele volta-se agora para um costume de um lar
judaico para ilustrar a diferença da posição favorecida de “filiação” na família de Deus como oposta a diminutiva posição de
um “menino [criança – JND]” na
família.
Vs. 1-3 – Os santos nos
tempos do Velho Testamento, sob a lei, são assemelhados a crianças em um estado
de infância, sob “tutores [guardadores] e curadores [intendentes]”. Eles estavam numa posição onde os
princípios elementares da religião judaica eram impostos sobre eles e isso
atendeu à condição de imaturidade espiritual deles, sendo necessária a
disciplina e cuidado constante da lei. Paulo diz: “Assim também nós, quando éramos crianças estávamos mantidos em
servidão debaixo dos elementos do mundo” (JND) – isto é, a religião mundana
(terrena) do judaísmo. Três coisas caracterizavam os santos em sua posição no Velho
Testamento: Eles não conheciam a Deus como seu Pai, a obra de redenção ainda
não havia sido realizada, e o Espírito de Deus ainda não havia sido dado. Os
rituais e cerimônias que caracterizavam aquela religião terrena haviam sido
designados para aqueles que estavam naquela posição diminuta.
Vs. 4-5 – Na “plenitude do tempo” (v. 4 – ARA),
quando o período de provação para o homem na carne se completou (4.000 anos ou
40 séculos desde Adão até Cristo), “Deus
enviou Seu Filho”. A vinda de Cristo colocou um fim nas três coisas que
caracterizavam aqueles do Velho Testamento. A encarnação de Cristo resultou na revelação do Pai (Jo 1:18); a morte de Cristo trouxe redenção (1 Pe
1:18-19); a ascensão de Cristo
resultou na descida do Espírito Santo (At 2:33). Portanto, quando uma pessoa
aceita o testemunho do Pai e o Filho e descansa em fé na obra consumada de
Cristo para sua salvação, ela é habitada com o Espírito Santo, e dessa forma é
capacitada a desfrutar a liberdade e os privilégios de um filho adulto na
família de Deus.
Paulo indica que aqueles que foram convertidos do judaísmo por crerem no
evangelho são como “crianças” que
amadureceram. Elas deixaram aquela posição de um menor, e estão agora numa
posição de “filhos” na família de
Deus. O Bar Mitzvá judaico ilustra isso. Numa família judaica, quando um menino
atinge a idade de 13 anos, ele é formalmente elevado da posição de criança na família para a posição de filho; a partir de então ele desfruta de
maiores liberdades e privilégios na família. Esta mudança de posição ilustra a
posição de um Cristão na família de Deus como oposta à daqueles em terreno
judaico nos tempos do Velho Testamento. Isso é verdade para ambos, tanto
crentes judeus como crentes gentios. Observe que quando Paulo diz: “a fim de (nós) recebermos a adoção de
filhos” no versículo 5, tal expressão refere-se a crentes judeus, e quando
ele diz: “E porque (vós) sois filhos”
no versículo 6, essa expressão refere-se a crentes gentios.
Teólogos adeptos da teologia do pacto nos dizem que “a plenitude do tempo” (v. 4 – ARA) é a mesma coisa que a “plenitude dos tempos” de Efésios 1:10.
Eles creem que quando o Senhor Jesus veio a este mundo em Sua primeira vinda
Ele introduziu a “dispensação [administração – JND] da plenitude dos tempos” – a qual é o
Milênio. Portanto, de acordo com os ensinamentos deles, estamos no Milênio
agora! Todavia, estas duas expressões não são iguais, “a plenitude do tempo” em Gálatas 4 está no singular, enquanto que
em Efésios 1:10 está no plural. A “plenitude
dos tempos” tem a ver com a culminação dos caminhos de Deus com o homem na
dispensação final (o Milênio), quando a glória de Deus será exibida no reino de
Cristo e a Igreja; como mencionado, “a
plenitude do tempo” tem a ver com a provação do homem na carne sendo
completada depois de 40 séculos de teste. Em Gálatas 3:16, Paulo já havia
mostrado que a ausência da letra “s” muda consideravelmente o significado da
passagem, o mesmo acontece nesta passagem. Podemos ver a partir disso como o
não atentar para detalhes importantes na Escritura pode levar ao erro. Devemos
ler a Escritura “preceito após preceito;
linha após linha” (Is 28:10 – JND), prestando grande atenção aos seu
menores detalhes.
Na versão Almeida Revista e Corrigida o versículo 5 diz: “a fim de recebermos a adoção de filhos”.
Esta última parte do versículo poderia ser traduzida como “filiação”[1],
pois é a mesma palavra usada para “adoção”
no grego (conforme nota de rodapé em Rm 8:15 na tradução de JND). Alguns
imaginam que, assim como existem duas maneiras de crianças serem introduzidas
em nossa família terrena (por nascimento ou adoção), assim também Deus também
tem duas maneiras de trazer pessoas à Sua família. No entanto, isto não é
verdade. Existe apenas uma forma de entrar na família de Deus – pelo novo
nascimento. Adoção é uma promoção de
alguém que já está dentro da família para a posição superior de filiação.
No sentido em que a palavra “crianças”
é usada em Gálatas 4, pessoas tornam-se “crianças”
por meio do novo nascimento, e então se tornam “filhos” ao receberem o Espírito. O apóstolo João não usa a palavra
“crianças”[2]
(1 Jo 2:1, 3:7, 18, etc. – JND) num sentido diminutivo como Paulo faz aqui. Nos
escritos de João, “crianças” de Deus
são vistas como tendo o Espírito (1 Jo 2:20; 3:24, 4:13), e, portanto, refere-se
àqueles a quem Paulo chama de filhos. “Crianças”
nos escritos de João estão na posição Cristã completa na família de Deus, mesmo
aqueles que João classifica como “filhinhos”
(recém-convertidos) estão nesta posição (1 Jo 2:18). João chama-os “filhinhos” porque a ênfase em suas epístolas está na vida eterna e no relacionamento que temos com o Pai em afeição (1 Jo 3:1). João não usa o termo “filhos” – embora a versão Almeida Revista e Corrigida traduza “crianças” como “filhos” erroneamente (Jo 1:12; 1 Jo 3:1; etc.).
V. 6 – Todas as três
Pessoas da Divindade são encontradas neste versículo garantindo a liberdade de
filiação aos crentes. Paulo diz: “Deus
enviou aos nossos corações o Espírito de Seu Filho, que clama:
Aba, Pai”. Esta bênção tremenda é a possessão comum de todos os crentes –
tanto aqueles que eram judeus como aqueles que eram gentios. Isto é visto no
uso do pronome “nós” no versículo 5,
que indica crentes judeus, e dos “vós”
no versículo 6a, que indica crente gentios. Na última parte do versículo 6, ele
une os dois juntos dizendo “nossos”.
A ênfase aqui não está tanto na bênção e posição de filiação, mas nos
privilégios práticos conectados com isso. É “o Espírito de Seu Filho” clamando em nosso coração. Isso é, o
Espírito nos dá a consciência desta revelação, e a resultante ousadia para nos
achegarmos ao Pai com a mesma intimidade que o próprio Filho de Deus Se achega
a Ele. Isso é indicado na expressão: “Aba,
Pai”. Estas são as mesmas palavras que o Senhor usou quando falou com Seu
Pai (Mc 14:36).
- “Aba” indica intimidade
- “Pai” indica inteligência
A liberdade de filiação é a de se achegar a Deus como nosso Pai “livremente se dirigindo a Ele” (JND)
em todas as nossas orações e louvores (1 Tm 4:5 – JND). Isso não significa que
podemos ser irreverentes quando falando com Deus – devemos sempre nos
achegarmos a Ele reverentemente. Mas podemos fazer isso com franqueza e
intimidade porque somos filhos.
V. 7 – O apóstolo
esclarece o fato de que este maravilhoso privilégio de filiação deve ser
exercitado individualmente, dizendo: “és
filho”. Observe que tal expressão está no singular. Enquanto uma companhia
de crentes, somos todos “filhos
de Deus” (Gl 3:26), mas o exercício prático de nossa liberdade diante do
Pai é inteiramente uma questão individual. O que isso significa é que não
podemos desfrutar das liberdades da filiação por outra pessoa, e vice-versa; é
algo que devemos experimentar individualmente. “Herdeiro de Deus” também é mencionado no singular aqui, talvez
pela mesma razão.
Vs. 8-11 – Tendo declarado
este maravilhoso privilégio de filiação, o apóstolo agora aponta para o
retrocesso dos gálatas. Eles haviam sido salvos e estavam na posição de filhos,
porém tinham voltado para a lei. Uma pessoa sob a lei se achega a Deus por meio
de um sistema de formas, cerimônias e rituais, os quais a colocam numa certa
distância de Deus. Este era o caso do judaísmo, que era uma religião dada por
Deus projetada para um povo terreno que não tinha a posição de filiação.
Aqueles que viviam no tempo do Velho Testamento se achegavam a Deus desta forma
porque “ainda o caminho do santuário [santo dos santos – ARA] não estava descoberto” (Hb 9:8). Ao se
dirigirem para esse sistema legal os gálatas perderam a liberdade de sua
filiação. O retrocesso deles não era em sua posição diante de Deus como filhos
– isto é algo imutável – mas em sua conduta como filhos. Não podemos jamais
perder nossa posição de filiação, mas podemos perder a liberdade dela – e este
era o problema dos gálatas.
Antes de serem convertidos eles serviram “aos que por natureza não são deuses” e estavam em sujeição a essas
falsas deidades escravizantes (v. 8). Isso mostra que, enquanto havia alguns
entre eles que eram de descendência judaica, a maioria dos gálatas eram gentios
convertidos. E agora, depois de serem salvos, ao se voltarem para a lei,
estavam retornando à servidão dos “rudimentos
[princípios – JND] fracos e pobres” da religião terrena.
A diferença era que o sistema legal mosaico era uma religião de cerimônias e
rituais ordenada por Deus, enquanto que a adoração pagã possuía rituais
corruptos. Ambas tinham rituais e cerimônias que ficavam entre o adorador e a
deidade que ele adorava. Portanto, para um Cristão adotar agora o judaísmo –
mesmo tendo sido uma religião ordenada por Deus – é colocar-se em servidão (At
15:10) e perder sua liberdade como um filho.
Isto aconteceu em grande medida na Cristandade. Adoração formal e
estruturada veio a ser aceita em muitas denominações como sendo o ideal de
Deus, e tomou o lugar da liberdade de filiação que Cristãos possuem de se
achegarem a Deus. Na maioria dos casos, esta ordem semi-judaica teve suas
raízes no catolicismo e nas igrejas reformadas que surgiram do catolicismo quando
crentes tinham pouca luz quanto à revelação Cristã da verdade. Naqueles dias,
eles tinham acabado de sair das trevas do catolicismo e não entendiam a
verdadeira natureza e chamado da Igreja. Eles (como muitos fazem hoje) creram
que a Igreja é o Israel espiritual, e que todas as promessas de Deus para os
patriarcas do Velho Testamento se cumpriram hoje na Igreja num sentido
espiritual. Sendo assim, eles não veem nada de errado em se misturar ideias
judaicas de aproximação de Deus com adoração Cristã.
Consequentemente, em lugar de se achegarem a Deus na liberdade de
filiação “livremente se dirigindo a Ele”
em oração espontânea, Cristãos nesses sistemas foram reduzidos ao uso de livros
de oração e programas de adoração pré-arranjados. A linguagem usada nesses
livros de oração indica um povo adorando a Deus a certa distância. A partir
disso vem a ideia de se “fazer uma reza”, que é a recitação de uma oração
previamente escrita. Nestes sistemas, Deus é tratado como “nosso Pai celestial” como se Ele estivesse bem
longe nos céus – embora as Escrituras digam que Cristãos estejam assentados em
lugares celestiais na mais próxima posição de Deus possível que uma criatura
poderia ter (Ef 2:6). Cristãos estão numa posição onde nenhum sacerdote de
ordem aarônica jamais pôde estar – na imediata presença de Deus, no santuário
celestial, o verdadeiro “santo dos santos”
(Hb 10:19 – ARA). Estando em tal lugar de proximidade de Deus é adequado que
nos dirijamos a Ele simplesmente como “Pai”. Além disso, salmos do Velho Testamento
são utilizados para expressar os sentimentos de Cristãos em suas orações e
louvor. Os salmos, como sabemos, estão cheios de expressões que indicam que o
adorador não tem a certeza de salvação e aceitação diante de Deus por meio da
obra consumada de Cristo. O grande efeito de Cristãos adotarem estas expressões
é que a liberdade de filiação na presença de Deus, o Pai é, na prática, perdida
inteiramente. Os que assim fazem acabam essencialmente se aproximando de Deus
no terreno do Velho Testamento.
Grupos Cristãos que possuem maior luz e entendem que a adoração Cristã
formal nas grandes igrejas eclesiásticas da Reforma não é o ideal de Deus,
também podem perder a liberdade de filiação na presença do Senhor. Se o
espírito de legalismo penetrar em tal ajuntamento de Cristãos, isso se fará
evidente pelas orações dos santos sendo rígidas e cheias de chavões
frequentemente repetidos.
Vs. 10-11 – Os gálatas
desviaram-se entrando em cerimônias e rituais rudimentares de religião terrena.
Estavam guardando “dias, e meses e
tempos, e anos”. Fazendo isso,
estavam se voltando para um sistema que os colocaria, na prática, no terreno do
Velho Testamento. Esta era uma grande preocupação para o apóstolo. Ele disse: “Receio de vós, que não haja trabalhado em
vão para convosco”. Isso
significa que ele temeu por eles no que diz respeito à vida espiritual deles,
porque estavam num caminho totalmente errado. Além disso, Paulo viu seu “trabalho” despendido com eles como
sendo de nenhum efeito.
Em suma, o primeiro ponto de
Paulo no capítulo 4 é que se um Cristão mistura princípios de lei com graça,
ele irá se colocar sob a “servidão”
da religião terrena e perderá a liberdade de sua filiação na presença do Pai.
[1] N. do
T.: tanto em Romanos 8:15, 23 quanto em Gálatas 4:5 encontramos a mesma palavra
o grego “uihothesia” que está como “adoção de filhos” na
versão King James e como “filiação” na de J. N. Darby)
[2] N. do T.: A
palavra grega “teknion”(diminutivo de
“teknon”), traduzida na KJV com “criancinhas” e na JND como “crianças”, é empregada em 1 Jo 2:1,
12, 28, 3:7, 18, 4:4, 5:21; Jo 13:33; Gl 4:19 e, conforme nota de rodapé da
versão JND em 1 Jo 2:1, “é um termo de
afeto paterno que se aplica aos Cristãos, independentemente do crescimento”;
a palavra grega “paidion”, traduzida
na KJV e JND como “criancinhas”, é
empregada nos cap. 2:13 e 18 de 1 João e significa os que são imaturos na fé,
como em 1 Coríntios 14:20. Em todas as versões em português todos esses
versículos são traduzidos como “filhinhos”
indistintamente.